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22 de Dezembro de 2020

Vida e Morte - por Adelmo Pelágio

A todos os trabalhadores policiais civis

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A todos os trabalhadores policiais civis

 

Estávamos reunidos com colegas em Itabaiana, conversando sobre nossa luta pelo adicional de periculosidade, quando tive minha fala educada e resolutamente interrompida pelo delegado Tarcísio, que anunciou o assassinato dos agentes Marcos Luís e Fábio Lopes, em Umbaúba. Estarrecidos, rumamos para o local do crime, onde presenciamos a inesquecível cena de seus cadáveres crivados de balas em via pública.
 

Meu eterno professor de Direito Penal costumava repetir que a morte é a cessação da vida, e que esta é o conjunto de forças que resiste àquela, não tendo a razão humana jamais ultrapassado os territórios cognitivos dessas definições tecidas por contradição recíproca. Vida e morte prosseguem firmemente como mistérios.


Não podendo solucionar o mistério da morte (ou da vida), meu psiquismo refugiou-se na tarefa de abrir os arquivos mnemônicos da vitalidade dos colegas extintos.


E foi assim que Marcos ressurgiu-me com sua leveza existencial surpreendente para um homem de tamanha operacionalidade policial. Essa rara combinação de características potencializava sua eficiência profissional, pois uma das virtudes do investigador é não evidenciar gratuitamente sua dimensão bélica.


Marcos era uma pessoa agradabilíssima, que sempre comunicava alegria de viver.


Por sua vez, Fábio era um homem muito tranquilo. Não parecia se importar com nenhuma dificuldade. Em Pacatuba, durante um certo tempo, a polícia investigativa se resumia a mim e ele. E, apesar das imensas carências que enfrentávamos, sua inteligência, disposição, bom humor e serenidade muito me alentavam.


Com ele vivi um dos momentos mais caros de meu acervo de memórias profissionais. Para cumprir um mandado de prisão contra um homem que esfaqueara sua esposa, Fábio conseguiu, com seu talento investigativo, um informante interessado em nos levar até seu foragido inimigo. Num pequeno barco a remo e com vestes turísticas, fomos conduzidos pelo oportunamente vingativo apontador a uma ilha situada entre o rio e o mar de Ponta dos Mangues.

Descemos do barco e caminhamos ao encontro de um grupo de pescadores situados numa área com casas de palha. Logo percebemos que um deles hesitava entre a permanência e a fuga. Nesse instante, decidi aproximar-me dele simulando interesse por uma chocadeira do projeto Tamar, numa afetação de curiosidade tão científica quanto inofensiva. Deu certo. Ele tranquilizou-se e eu pude caminhar ao seu encontro fitando seu rosto cada vez mais próximo. Minha única referência da imagem do investigado era uma desatualizada fotografia três por quatro em preto e branco. Era ele ou não era, era ele ou não era, era ou não era: “parado, polícia”. Era de fato o procurado.


Nesse dia, eu e Fábio voltamos para nossas casas com uma imensa sensação de dever cumprido, enobrecida pelo fato de estarmos numa sexta-feira em feriado. Retornamos pela estrada rusticíssima que ligava Pacatuba a Pirambu. Em dado instante do trajeto, passamos por um mirante litorâneo belíssimo, no qual se contemplava um quadro de restinga, duna e mar, em estado virginal. Fábio queria um resort na área; eu a queria intocada. Não brigamos por isso; sabíamos que o destino de tudo aquilo estava fora de nosso controle. O que talvez não soubéssemos ainda é que, em verdade, assim também era o nosso destino.


O fato é que, por mais que racionalizemos a vida e a morte como mistérios que se definem por contradição mútua, nunca perderemos a perplexidade ante o paradoxo de um corpo inerte ter expressado a vivificação de personalidades constituídas por vozes, gestos, palavras, sentimentos e emoções. Só me resta dizer: descansem em paz, colegas.


Aracaju/Se, 17 de dezembro de 2020.

 

Adelmo Pelágio F.

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