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13 de Janeiro de 2021

A constitucionalidade da medida de afastamento do lar pelo delegado de polícia

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Carlos Alberto Menezes*
Samyle Regina Matos Oliveira**
Antônio  Wellington  Brito  Júnior***
 

Resumo

O presente estudo demonstrará a constitucionalidade do artigo 12-C, II, da Lei nº 11.340/2006, que autoriza o delegado de polícia a determinar o afastamento do lar daquele que pratica delito em cenário de violência doméstica e familiar contra a mulher. Discorrerá sobre os fundamentos suscitados na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 6.138, aforada pela Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), objetivando demonstrar que a prerrogativa
estendida à autoridade policial não viola nem a separação de poderes, nem o devido processo legal e nem a cláusula de reserva jurisdicional, além de se coadunar com os postulados constitucionais que asseguram a dignidade humana e a vedação à proteção insuficiente dos direitos fundamentais.
Palavras-chave: Afastamento do lar. Delegado de polícia. Constitucionalidade.


* Doutor em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2008). Professor Associado da Universidade Federal de Sergipe. Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Direito Penal. Professor da Pós-Graduação Stricto Sensu da UFS. Email: carlosalbertomenezesadv@yahoo.com.br.
** Doutoranda em Direito pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Mestra em Ciência Jurídica pelo Programa de Mestrado e Doutorado da Universidade Estadual do Norte do Paraná (UENP). Professora e coordenadora do curso de Direito da Universidade Tiradentes, campus Propriá. Email: samyle.adv@gmail.com.
* Mestrando em Direito pela Universidade Federal de Sergipe (PRODIR/UFS). Pós-graduado em Ciências Penais pela Universidade Anhanguera (UNIDERP). Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Sergipe (UFS). Delegado de Polícia do Estado de Sergipe. Professor da Pós-graduação latu sensu em Direito Constitucional do IEJUR (Instituto de Estudos Jurídicos/DF), na modalidade Ensino à Distância (EAD). Email: wbritojunior@gmail.com.


INTRODUÇÃO


A Lei 13.827/2019 modificou os termos do art. 12 da Lei 11.360/2006 (Lei Maria da Penha), a fim de determinar o dever de Estados e Distrito Federal de instituírem unidades especializadas e núcleos investigativos dentro da polícia civil para o atendimento e a investigação de casos de feminicídios e ofensas graves contra a mulher (art. 12-A), prevendo ainda o poder de delegados de polícia requisitarem os serviços públicos necessários para a proteção dos bens cuja legislação referida tenciona resguardar (art. 12-B, § 3º).

 

A inovação na lei permite o afastamento domiciliar do agressor por determinação da autoridade policial em casos de violência doméstica contra mulher ou dependentes, com risco atual ou iminente à vida ou à integridade física, em município que não seja sede de comarca, evitando lesão irreversível quando não for possível o pronto pronunciamento do magistrado.


Insurgindo-se contra essa inovação, a Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) ajuizou a ADI 6.138, atacando a possibiliade desse afastamento do agressor por ordem policial e argumentando violação aos princípios constitucionais do devido processo legal (art. 5º, LIV), da separação de poderes (art. 60, § 4º, III) e da inviolabilidade do domicílio (art. 5º, XI).


O objetivo deste estudo é demonstrar a constitucionalidade da hipótese legal do afastamento do agressor do domicílio pelo juiz e pelo delegado quando houver risco à vida ou à integridade da mulher, partindo de uma visão holística dos normativos pertinentes e demonstrando a inconsistência dos argumentos suscitados pela AMB na ADI 6.138.
 

Os problemas formulados são: a) é constitucional o afastamento do lar por ordem do delegado de polícia em crimes cometidos em cenário de violência doméstica?; b) em caso positivo, em que hipóteses a referida ordem é possível?; c) a medida de afastamento do lar, efetivada pelo chefe de polícia, atende ao escopo de um direito penal garantista, sendo adequada, proporcional e razoável? d) nessas hipóteses, é admissível o encaminhamento do agressor a grupos reflexivos implementados por políticas públicas menos danosas? e) será que sempre se deve investir na pena privativa de liberdade ou será que é mais prudente, em determinadas hipóteses, conjugar o distanciamento do agressor do lar com ações concretas capazes de conduzi-lo a reflexões pedagógicas sobre seus atos, promovendo-se o respeito aos direitos das mulheres?


1. A METODOLOGIA

Faz-se uma análise jurídica centrada na necessidade da proteção adequada, proporcional e ágil da defesa da dignidade da mulher (e de seus dependentes), vítima da violência doméstica, o que conclama para uma pronta resposta estatal, embasada na proteção suficiente de bens jurídicos e em mecanismos eficazes no processo de responsabilização do agressor em todas as dimensões.

Sendo assim, a defesa da constitucionalidade do art. 12-C, II, da Lei 11.360/2006 partirá das seguintes premissas: a) o papel histórico do delegado e sua peculiar importância na persecução penal brasieira enquanto garantidor dos direitos fundamentais; b) a inexistência de ofensa à cláusula de reserva jurisdicional; c) a prerrogativa discricionária conferida legalmente ao delegado na proteção dos bens jurídicos alhures declinados quando incursiona em análises técnico-jurídicas de natureza pré-processual; d) o respeito pelo devido processo legal e pela higidez da separação de funções estatais;
e) a reverência a uma persecução penal que avalize concomitantemente a integridade das vítimas e a responsabilização do agressor.


O método científico utilizado será o dialético e as fontes de pesquisa são bibliográficas, priorizando-se os aspectos constitucionais e uma interpretação garantista dos direitos fundamentais.


2. O PAPEL HISTÓRICO DO DELEGADO DE POLÍCIA


No Brasil o delegado de polícia desempenha funções investigatórias e judiciárias, e, conforme explica Perazzoni, a investigação de delitos fica a cargo do chefe de polícia (2011, p. 91).


É importante esclarecer que a função do inquérito não está restrita à reunião de subsídios destinados à formação da opinio delicti pelo Ministério Público (PEREIRA, 2017, p. 27-28), pois o inquérito não se confunde com a ação penal, podendo até mesmo ser óbice ao processamento de investigados que não reúnem contra si os indícios de autoria e nem provas de materialidade delitiva, consoante reconhecido pelo STF no julgamento da ADI nº 3.441 (CABETE, SANNINI, 2018, p. 294).


Tirante o aspecto investigativo, o papel do delegado está mais próximo da Magistratura do que do Ministério Público, pois persegue a descoberta da verdade, auxiliando na correta aplicação da justiça, ainda que contrariando as finalidades ministeriais acusatórias.


Por isso, uma breve incursão histórica é pertinente. Em 1841, na vigência da Lei 261, as autoridades policiais eram nomeadas entre juízes e cidadãos respeitáveis. Analisavam casos criminais menos graves e expediam mandados de busca e apreensão e prisão de denunciados, situação que apenas se altera em 1871 quando passaram a julgar ilícitos penais, estatuindo-se o inquérito policial como mecanismo exclusivo de apuração criminal (PERAZZONI, 2011, p. 82). Com a República, os entes federados passaram a ter competência para legislar concorrentemente sobre processo penal, até que, com o advento do Código de Processo Penal de 1943, a autoridade policial desvinculou-se da magistratura, substituindo-se a expressão “jurisdições” por “circunscrições” (PEREIRA, 2017, p. 45).


A Constituição de 1988 conferiu mudanças significativas. Atribuiu a autoridades distintas as prerrogativas de investigar, processar e julgar. Exigiu o provimento do cargo de delegado por uma carreira específica, nos termos do art. 144, § 4º, incumbindo-lhe a direção das polícias civis e federal. Por fim, demarcou para o cargo suas principais funções: a investigativa e a judiciária, encarnando a segunda uma postura proativa que vai além da incumbência de apenas cumprir as requisições dos juízes. Ao delegado atribuiu-se, além da prerrogativa de representação ao juiz de medidas restritivas da liberdade, a imposição direta de medidas coercitivas em face da privacidade e do patrimônio do investigado nos limites da lei, o que se resume nas seguintes previsões: a) a representação para concessão judicial de medidas cautelares, entre as quais a prisão provisória e o sequestro de bens (arts. 13, IV, 127, 282, § 2º, 311, CPP, art. 2º da Lei 7.960/1989); b) o arbitramento de fiança para delitos de pena máxima não excedente a quatro anos ou em relação aos quais a lei não estabeleça desde logo a inafiançabilidade (arts. 322 e 323, CPP); c) a concessão de liberdade provisória uma vez adimplida a fiança arbitrada a partir dos parâmetros normativos (art. 327, CPP);
d) a apreensão dos bens ilicitamente produzidos ou reproduzidos (art. 530-B, CPP); e) a restituição de coisas apreendidas durante o apuratório acaso desimportantes para a investigação ou para o processo (art. 120, CPP); f) a requisição de exames periciais, dados, informações e documentos (art. 13-A, 13-B, CPP, arts. 2º, § 2º, da Lei 12.830/2013, arts. 15, 16 e 17 da Lei 12.850/2013); g) a condução coercitiva de testemunhas e investigados (art. 260, CPP); h) a autorização para participação de detetive particular em colaboração suplementar à investigação oficial, mediante conveniência e oportunidade (art. 5º, § único, da Lei 13.432/2017); i) a celebração de acordos de colaboração premiada com delatores dispostos a colaborar com a Justiça (art. 4º, § 2º, da Lei 12.850/2013); j) a concessão de soltura imediata ao preso quando da fluência in albis do prazo da prisão temporária, ainda que sem ordem expressa do magistrado (art. 2º, § 7º, da Lei 7.960/1989).


Depreende-se que, além das prerrogativas quanto aos atos investigativos, a autoridade policial possui atribuições judiciárias autônomas, realizando análises de alta complexidade técnica, exigindo-se que o ingresso no cargo se dê por concurso público privativo de bacharel em direito, nos termos no art. 3º da Lei 12.830/2013 (CABETE, SANNINI, 2018, p. 295-297).


Por tais razões, os demais membros da polícia judiciária não são dotados de permissão constitucional para deliberar sobre a cautelar do afastamento do lar, mesmo na hipótese de ausência do gestor na delegacia sita em município que não seja sede da comarca.


3. AS PRERROGATIVAS DE FUNÇÃO JUDICIÁRIA E A CLÁUSULA DE RESERVA JURISDICIONAL


Na ADI 6.138 a AMB argumentou que a imposição do afastamento domiciliar do agressor em caso de violência doméstica contra a mulher (ou seus dependentes) fere o teor do artigo 5º, XI, da Constituição Federal, segundo o qual a casa é asilo inviolável.


Apesar da função de proteger a integridade da vítima, a determinação pelo delegado do afastamento do agressor não se subso- me ao referido dispositivo, devendo a autoridade policial, diante da urgência do caso, expedir ordem para que o investigado se retire momentaneamente da residência do casal, até que o juiz se manifeste sobre a medida, no prazo máximo de vinte e quatro horas da comunicação do ocorrido.

São dois os detalhes que chamam a atenção.


O primeiro é que, excetuadas as ressalvas constitucionais expressas, não se determinará o ingresso forçado na residência, mas apenas se comunicará o investigado da determinação para a saída imediata e temporária do domicílio. Havendo descumprimento, o investigado incorre em crime de desobediência, assumindo o risco de uma prisão em flagrante. Havendo o cumprimento, minimiza-se a conjuntura de detenção flagrancial, preservando-se a integridade física e psíquica da ofendida (ou de seus dependentes). A suposta inconstitucionalidade apontada pela AMB na ADI 6.138 decorre de má interpretação do dispositivo, que não propõe a retirada forçada do morador de sua residência, mas a comunicação para que se retire.


O segundo é o de que o afastamento do investigado de sua propriedade não ocorrerá por prazo indeterminado, mas pelo prazo máximo de quarenta e oito horas, lapso compreendido entre a ordem de afastamento pelo delegado e o tempo conferido ao juiz para delibação acerca da correção da medida, sem prejuízo de prorrogação por ordem judicial.


A despeito dos recursos tecnológicos que permitem a rápida troca de informações entre os órgãos da persecução penal pela via eletrônica, confrontando-se a burocracia e alavancando-se a celeridade (ALCÂNTARA, GALLINARO, MARTINS, 2018, p. 566-567), ainda existem em nosso país localidades distantes e desprovidas desses recursos, dificultando o contato direto entre delegado  e juiz,  de modo que, em razão da situação de urgência e não sendo caso de prisão em flagrante delito, nada obsta que o delegado expeça uma ordem provisória de afastamento domiciliar, cuja correção será analisada dentro de um prazo exíguo pelo juiz, o qual poderá revogá-la, mantê-la ou até mesmo decidir pela decretação da prisão preventiva. Obstar tal determinação pela autoridade policial importaria em também sonegar inúmeras prerrogativas espalhadas no CPP e em leis esparsas que retratam diretrizes análogas. Situações como a homologação da prisão em flagrante e apreensão de bens obtidos ilicitamente são exemplos em que o delegado analisa se os parâmetros legais autorizam a tomada de medidas restritivas sem pronunciamento prévio do magistrado, cabendo ao juiz deliberar, o mais rápido possível, acerca da manutenção ou não da medida, impondo a cessação dela sempre que ilegal ou desnecessária.


4. OS ARGUMENTOS DA SEPARAÇÃO DE PODERES E DO DEVIDO PROCESSO LEGAL


A AMB alegou na ADI 6.138 que a autorização policial para o afastamento domiciliar do investigado feria a separação de poderes e o devido processo legal, possibilitando ao Executivo imiscuirse em atribuições de caráter jurisdicional.


Embora a polícia judiciária formalmente costume integrar a Administração Pública, materialmente se aproxima do Judiciário quanto aos atos de restrição a direitos fundamentais.


Ferrajoli (2002) trata da complexidade sobre a separação absoluta entre poder judiciário e polícia judiciária, revelando atribuições que se interconectam de maneira simbiótica. No Brasil, o delegado de polícia exerce a atribuição de impor, ainda que provisoriamente, restrições às liberdades fundamentais, cuja legalidade e pertinência sempre ficarão sob a supervisão do magistrado, em virtude do sistema persecutório pátrio, concebido no viés filosófico garantista que destrincha em órgãos diversos as prerrogativas de investigar, acusar e julgar (BADARÓ, 2003, p. 112).


Com a vigência da república, o juiz passou a atuar de forma excepcional e imparcial no inquérito, com foco nos rumos do apuratório e sem a obrigatoriedade de alcançar evidências necessárias à condenação dos investigados. A acusação foi atribuída, como regra, ao Ministério Público, parte na ação penal pública incondicionada.


Entrementes, a separação das relevantes prerrogativas de investigar, processar e julgar sofreu revezes quando o parquet assumiu poderes investigatórios próprios aos do delegado, afetando o modelo acusatório garantista, voltado ao resguardo do tratamento isonômico entre defesa e acusação, outorgando-se ao investigado/réu o status de sujeito de direitos (CHOUKR, 1995, p. 8).


Medidas como determinação do delegado para que o investigado se retire provisoriamente de sua residência em razão de imputação de violência doméstica cumprem os dogmas do garantismo penal1,evitando que o julgador seja influenciado por uma das partes, crítica que sempre se agudiza quando se vislumbra uma participação contumaz do magistrado no desenrolar da apuração preliminar dos fatos.


Daí se nota que a separação das funções de investigar, acusar e julgar concretiza plenamente o devido processo legal constitucional numa lógica de contenção do poder que assegure ao investigado/ indiciado/acusado um desfecho justo da persecução penal.


5. A VEDAÇÃO À PROTEÇÃO INSUFICIENTE DE DIREITOS FUNDAMENTAIS


A Constituição Federal, em seu art. 5º, § 1º, confere aplicabilidade imediata às normas estatuintes de direitos e garantias fundamentais e tais preceitos devem ser interpretados de modo a se extrair deles a máxima efetividade. Havendo colisão normativa, o intérprete harmonizará a decisão, preservando o núcleo principiológico essencial, buscando o alcance de uma proteção suficiente e necessária.

Quanto à proteção suficiente, veda-se o excesso na restrição ao direito fundamental e, de outro lado, veda-se também que a proteção estatal seja insuficiente (BARROSO, 2019, p. 512), homenageando-se a técnica da proporcionalidade.


As leis, na atual sociedade pluralista, tendem a certa abstração e generalidade, pois são promulgadas conjugando os interesses plurais dos grupos representados pelos parlamentares. O recurso a uma semântica aberta e indeterminada, em algumas ocasiões, atende à estratégia de não versar acerca de projetos que, uma vez aprovados, enfureceriam camadas influentes da comunidade, independentemente da solução dada (DWORKIN, 2019, p. 18).

No uso da técnica da proporcionalidade, destacam-se os vetores da adequação, da necessidade e da proporcionalidade em sentido estrito, a realçar um controle de sintonia entre a justeza da medida e a imprescindibilidade da intervenção estatal (MENDES, BRANCO, 2015, p. 227).


O art. 12-C da Lei 11.360/2006 abre a possibilidade de uma coação menos danosa do que a consistente na privação imediata da liberdade. Diante de uma situação urgente de violência contra a mulher, se o delegado não tem a opção de determinar o afastamento domiciliar do agressor (ou porque nem a lei e nem os tribunais lho permitem), tenderá à lavratura do flagrante, ainda que a primeira escolha soe mais adequada2.


A previsão legal de afastamento domiciliar depõe, portanto, contra a banalização dos efeitos deletérios do cárcere. Explica Souza Netto (2002, p. 177) que os códigos processuais modernos enveredaram por um sistema menos gravoso de medidas cautelares substitutivas, ficando a custódia provisória circunscrita aos casos de extrema necessidade. Para Fernandes (2015, p. 240), “a Lei Maria da Penha traz um modelo dotado de efetividade para proteger a vítima, reeducar o agressor e romper o ciclo da violência, ora denominado processo protetivo”.


Destarte, considerando a técnica da proporcionalidade, a determinação para o afastamento domiciliar do pretenso agressor pela autoridade policial e o possível encaminhamento deste a um grupo reflexivo (quando houver)3 serão providências: a) necessárias, pois refletem medidas indispensáveis na proteção da integridade física e psíquica da mulher e/ou de seus dependentes, incorporando preocupação com a responsabilização e a reinserção social do agressor, o que contribui para uma restauração familiar; b) adequadas, pois se mostram capazes de eliminar o risco imediato que circunda o conflito; c) proporcionais em sentido estrito, pois afetarão provisoriamente o patrimônio no escopo de minimizar os efeitos deletérios ínsitos à prisão.


CONSIDERAÇÕES FINAIS


A estrutura da persecução penal brasileira se consolidou na perspectiva garantista de um devido processo legal em que as funções de investigar, processar e julgar se encontram separadas. Com a inserção da figura do juiz de garantias pela lei 13.964 de 2019, evidenciou-se que o agir oficioso do magistrado deve se dar em caráter excepcional, a fim de que se privilegie sua imparcialidade, sendo premente o afastamento do juiz das questões relacionadas à investigação preliminar, reservando-se a direção do apuratório ao delegado, cujo plexo de atribuições guarda caráter apuratório e judiciário.


A visão equivocada que limita a carreira do delegado ao caráter estritamente apuratório foi posta à prova quando a AMB aforou a ADI 6.138, questionando a constitucionalidade do art. 12-C, sob o argumento de que houvesse ofensa à cláusula de reserva jurisdicional, à separação de funções ou poderes estatais e ao devido processo legal. O presente trabalho demonstrou que a inconstitucionalidade alegada pela AMB se restringe à concessão de poderes decisórios aos demais integrantes das polícias civis e federal. Demonstrou-se que o delegado é dotado de poderes decisórios que restringem bens fundamentais relacionados à liberdade, ao patrimônio e à privacidade, sendo constitucional não apenas a determinação de afastamento do lar do agressor que pratica violência doméstica, como também o seu encaminhamento a grupos reflexivos, desde que a ordem emane das autoridades policial ou judicial.


Quanto à cláusula de reserva de jurisdição, demonstrou-se que a lei apenas permitiu a emissão de ordem para que o agressor se afaste do lar conjugal. No que toca à separação de poderes, provou-se que o delegado, embora integre a estrutura do Executivo, concentra atribuições que o aproximam do Judiciário. No concernente ao devido processo legal, o conceito se relaciona intimamente com uma persecução penal em que o investigado se apresenta como sujeito dotado de direitos, entre os quais se prestigia o de ser julgado por um juiz imparcial e equidistante às partes.


Por derradeiro, foram feitos aportes à técnica da proporcionalidade, realçando-se a necessidade de uma persecução que proteja suficientemente os bens jurídicos sem se descurar de ações adequadas, necessárias e proporcionais.
 

REFERÊNCIAS

BADARÓ, Gustavo Henrique. Ônus da prova no processo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003.
BONIZZATO, Luigi & REIS, José Carlos Vasconcelos dos Reis. Direito Constitucional: questões clássicas, contemporâneas e críticas. 2. ed. Rio de Ja- neiro: Lumen Juris, 2018.
BRANCO, Paulo Gustavo Gonet & MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de Direito Constitucional. 10. ed.: revista e atualizada. São Paulo: Saraiva, 2015.
CABETTE, Eduardo & SANNINI, Francisco. Tratado de legislação especial criminal. 1. ed. Salvador: Juspodivm, 2018.
CHOUKR, Fauzi Hassan. Garantias constitucionais na investigação criminal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995.
DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. Tradução: Luís Carlos Borges. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2019.
FERNANDES, Valéria Diez Scarance. Lei Maria da Penha: o processo penal no caminho da efetividade. São Paulo: Atlas, 2015.
FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução: Ana Paula Zomer Sica, Fauzi Hassan Choukr, Juarez Tavares e Luiz Flávio Gomes. 3.ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002.
KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. 6.ed. Tradução de João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
MARTINS, Marcelo Guerra et al. Virtualização do inquérito policial e eficiência: típico reflexo da era informacional. Revista Jurídica Cesumar. Mestrado, v. 18, n. 2, p. 549-571, mai/ago, 2018.
MAZLOUM, Ali. Reserva de jurisdição: os limites do juiz na investigação criminal. 1. ed. São Paulo: Matrix, 2016.
PERAZZONI, Franco. O Delegado de Polícia no Sistema Jurídico Brasileiro: das origens inquisitoriais ao garantismo penal de Ferrajoli. Segurança Pública & Cidadania. Brasília, v. 4, n. 2, p. 77-110, jul/dez, 2011.
PEREIRA, Eliomar da Silva. Direito de Polícia Judiciária: introdução às questões fundamentais. RDPJ, Brasília, ano 1, nº. 1, p. 25-58, jan/jul, 2017.
SOUZA NETTO, José Laurindo de. O princípio da proporcionalidade como fundamento constitucional das medidas substitutivas da prisão cautelar. Argumenta Journal Law. Jacarezinho, n. 2, p. 176-196, 2002.
VIEIRA DE CARVALHO, Grasielle Borges. Grupos Reflexivos para os autores da Violência Doméstica: Responsabilização e Restauração. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018.

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